JUN052025 A dimensão estratégica dos contratos públicos: Mais que acordos, instrumentos de regulação e governaça

A dimensão estratégica dos contratos públicos: Mais que acordos, instrumentos de regulação e governaça

Por Rodrigo Ematné Gadben

No complexo cenário da administração pública contemporânea, a interação entre o Estado e o setor privado por meio de contratos administrativos evoluiu significativamente. Longe de se limitarem à tradicional função de adquirir bens ou contratar serviços essenciais, os contratos públicos emergiram como ferramentas multifacetadas, desempenhando um papel central na concretização de políticas públicas e na própria arquitetura de setores importantes da economia e da infraestrutura nacional. Essa transformação revela um lado cada vez mais relevante: a função regulatória do contrato público, um aspecto que demanda atenção estratégica não só por parte de empresas, investidores e gestores que atuam na interface com o poder público, mas como do próprio poder público.

Compreender essa função regulatória implica reconhecer que o Estado, em muitas circunstâncias, escolhe deliberadamente utilizar o instrumento contratual para estabelecer regras, direcionar comportamentos e definir padrões de desempenho para uma determinada atividade econômica ou setor. Essa abordagem pode complementar ou, em certos casos, até mesmo substituir a edição de leis e regulamentos de caráter geral e abstrato. O contrato, assim, passa a transcender sua natureza de mero pacto bilateral entre as partes signatárias. Ele se converte em uma norma concreta, com força vinculante, cujos efeitos se irradiam para um universo mais amplo, impactando diretamente usuários dos serviços, consumidores finais, concorrentes no mercado e a sociedade como um todo. As cláusulas contratuais passam a ser vetores de ordenação setorial, moldando a conduta dos agentes econômicos, estruturando sistemas de incentivos e definindo um complexo emaranhado de obrigações e direitos que reconfiguram a dinâmica do mercado em questão.

A manifestação mais evidente dessa capacidade regulatória ocorre nos contratos de longo prazo, especialmente aqueles celebrados em setores de infraestrutura ou serviços públicos essenciais, como concessões rodoviárias, aeroportuárias, de saneamento básico ou energia, bem como nas Parcerias Público-Privadas (PPPs). Essas avenças, por sua natureza, envolvem investimentos vultosos, prazos extensos e um ambiente marcado por incertezas tecnológicas, econômicas, sociais e ambientais. Seria impraticável, e até mesmo indesejável, tentar prever e regular exaustivamente todas as contingências futuras no momento da assinatura. Por essa razão, tais contratos são desenhados com mecanismos mais sofisticados de flexibilidade, adaptação, renegociação periódica e sistemas de resolução de controvérsias. Eles se estabelecem como verdadeiras plataformas de governança dinâmica, definindo não apenas as regras iniciais do jogo, mas também os processos e instâncias para sua revisão e ajuste contínuo ao longo do tempo. O objetivo é sempre buscar um delicado equilíbrio entre a sustentabilidade econômico-financeira do projeto para o parceiro privado e a salvaguarda do interesse público, assegurando a qualidade e a continuidade dos serviços. Lidar com essa complexa engenharia contratual exige não apenas profundo conhecimento jurídico, mas também uma visão estratégica apurada.

Além disso, ao estipular obrigações claras, metas de desempenho quantificáveis e padrões de qualidade rigorosos para a entidade contratada, o contrato público procura funcionar como um mecanismo eficaz de alinhamento entre os interesses privados e os objetivos coletivos traçados pelo poder público. Cláusulas que detalham regimes tarifários, definem indicadores de performance, estabelecem obrigações de investimento, impõem padrões ambientais e sociais ou criam mecanismos transparentes de reequilíbrio econômico-financeiro são exemplos palpáveis dessa função. Elas não apenas criam um vínculo jurídico formal, mas efetivamente estruturam um modelo de regulação específico para aquela relação contratual. Essa “regulação por contrato” opera frequentemente em sinergia, e por vezes de forma coordenada e complementar, com a regulação setorial mais ampla exercida pelas agências reguladoras independentes, permitindo ao Estado uma atuação mais customizada e responsiva às particularidades de cada projeto ou setor.

Em última análise, a crescente proeminência da função regulatória dos contratos públicos reflete uma concepção mais moderna e sofisticada do papel do Estado na economia do século XXI. Observa-se um movimento gradual de um Estado predominantemente executor direto para um Estado que atua mais como planejador, organizador, indutor de boas práticas e fiscalizador de atividades delegadas ou realizadas em parceria com o setor privado. Nesse novo paradigma, o contrato administrativo se consolida como uma ferramenta jurídica indispensável, não apenas para viabilizar a atuação estatal e garantir a prestação de serviços à sociedade, mas fundamentalmente para orientar o desenvolvimento econômico e social de forma sustentável, promovendo a eficiência, a inovação e a responsabilidade. Para as empresas que operam nesse ambiente regulatório contratualizado, compreender a profundidade, as nuances e as implicações dessa dimensão é um fator crítico de sucesso, essencial para garantir segurança jurídica, gerenciar riscos de forma proativa e capitalizar as oportunidades inerentes a essa complexa e dinâmica interação com o setor público.